2013-05-08
(Não dos olhos, que esses míopes, nem um palmo conseguem ver à sua frente, devido à condição sociopolítica de um meio ambiente de esquizofrenia paranoide com alucinações e delírios que subjugam o direito inalienável à manutenção do corpo e da vida condigna).
Vistas inquietas que me fogem para lá da fronteira destas quatro paredes porque a sua condição é unicamente a política externa da alucinação guliveriana das mamas da vizinha.
Horizonte é delírio bastante para zarpar pela janela e ir direto ao assunto ou não fosse a minha condição geoestratégica impossibilitante devido ao formigueiro liliputiano de um viriato aquartelado em quatro paredes.
Estou a imaginá-la, por magia, nua, em frente ao espelho com os seios apontados como faróis à mesa das negociações, sem a consciência dos olhos vir ao de cima, ao mesmo tempo que as vistas deambulam num solilóquio interior com sintomas de apoplexia provocada pela casa da vizinha pregada ao televisor.
Apoplexia provocada pelo derrame quimérico de que cada um de nós pode viver uma vida inteira sem rugas, nem patas de galinha a comerem-nos os olhos.
Nenhum espelho capaz de nos devolver a singular e universal condição humana crescente e senescente que nos faça aproximar da origem...
E por isso, quando sentir que estiver morto, o melhor é permanecer de olhos fechados e com a cara tapada
e guardar o último e fugaz sorriso sem desvios oftalmológicos
nas nuvens de amor e de tabaco -
em ambos casos produzidas pela combustão das bocas...
em ambos os casos um vício
ou um precipício do espelho do que somos...
2011-10-27
da ferradura do cavalo de um general.
Era uma vez uma ferradura que se soltou
da pata do cavalo de um general.
Era uma vez um cavalo coxo de um general
que fez cair abaixo da cela o general.
Era uma vez uma força do exército de um general
uma força do exército sem comando do general.
E assim como assim
devido à causa primeira,
segunda e terceira
toda a infantaria caiu
depois a cavalaria caiu
depois a artilharia foi bombardeada
depois a engenharia ruiu
depois a intendência fugiu
depois a comunicação deixou de ser comunicação.
Era uma vez um país que perdeu a guerra
por causa de um prego que se soltou
da ferradura do cavalo
de um general...
Um prego?!
2011-03-21

2011-02-04
2011-01-27
2011-01-25
e o dia pronto a nascer dentro noite
dentro do dia havia uma casa
e um homem num quarto
dentro da casa
no princípio dos tempos
havia no quarto dentro da casa
um homem
e uma mulher
que gerava frutos dentro do ventre
que se acendiam como luzes
para fora do dia
onde uma criança brincava
e envelhecia
na esperança que uma árvore
lhe nascesse por debaixo dos pés
para a fazer levitar
até à janela do quarto do homem
por não suportar
escutar nele o gemido
louco da mãe
que luzia
para fora da noite.
2010-11-23
2010-10-14
2010-09-22
2010-08-15
2010-07-03
as tuas mãos são as mãos mais perfeitas meu amor
e tu bem sabes porquê.
as tuas mãos não são mãos,
mas um círculo em redor de mim
como os anéis em redor de Saturno.
as tuas mãos são como o tronco de heras
que cresce em volta do pinheiro manso no nosso jardim.
tu sabes que o pinheiro não se importa da companhia das heras.
as tuas mãos nunca enxugaram as lágrimas.
mesmo quando parti e as tuas lágrimas correram
correram com a mesma certeza que o rio corre para o mar
na exacta direcção das curvas do teu rosto
umas em direcção à boca
outras precipitando-se do teu queixo
como pingos de chuva, em direcção ao abismo da terra.
as tuas mãos nunca enxugaram lágrimas
porque a terra te pede humidade para crescer
e a tua boca água para matar a sede.
as tuas mãos são flores de veludo.
suaves lilases,
rosas,
orquídeas,
papoilas, margaridas…
as tuas mãos são beijos,
as tuas mãos são bússolas,
manhãs de céu primaveril
que me abrem a porta para comprovar o sol.
as tuas mãos são os teus dedos
e os anéis de noivado e da aliança.
às vezes as tuas mãos são o sal que tempera a comida
o açúcar exacto no café
as mãos de ferro que me brune as camisas
as mãos de aço que me levantam como gruas nos momentos difíceis.
outras vezes
as tuas mãos são pirómanas
porque incendeiam cada poro da minha pele
as tuas mãos também são rebeldes
mãos de carne,
de músculo e de osso,
mãos de coração arritmado
por força do compasso mútuo das nossas ancas,
mãos firmes que me fazem arder até mais não.
as tuas mãos desenham as mesmas palavras que a tua boca.
as tuas mãos escrevem cartas de amor
e nelas às vezes eu leio saudade
que é uma palavra complicada de traduzir noutras línguas
e outras mais naturais
como paz,
amor,
mãe,
irmão,
que são palavras simples sem prefixos nem sufixos,
nem aglutinações ou composições,
ou coisas demais complexas que as mãos não entendem.
as tuas mãos e as minhas nunca dirão adeus.
de mãos dadas
dizer adeus é impossível.
2010-06-11
eu trepava por uma laranjeira
para entrar dentro do teu quarto
através da janela dos teus olhos.
Eu era um gato vadio
e felino como todos os gatos
mas com menos que sete vidas
por causa do ciúme.
Como uma seta de cupido
disparada no ar
fui mutilado nos bigodes
por enfrentar com estas garras
a morte
na contenda com os outros gatos
que tive de matar
pelo menos sete vezes, e agora...
por causa do ciúme
não há amor que vença outra batalha.
2010-06-06
justificada uma paixão
como justificada
é a natureza
de uma onda gigante
a levantar-se
para engolir
um barco.
Nada direi do amor
nem de sua justiça
como não se podem julgar
os beijos atirados
pelos marinheiros
do fundo do mar
para aviltar as viúvas
que bordam na praia.
Nada direi:
porque "tudo é justo e injusto
e igualmente justificado".
2010-04-26
2010-04-22
2010-04-09
de dizer adeus
porque o amor tem sempre
a impossibilidade
da despedida
por não haver nele
nenhuma forma de morrer
como a luz do crepúsculo
que quando aqui se apaga
é para fazer dia noutro lugar.
E por isso não julgues
que tenha perdido
o norte
dentro da estátua de mármore
em que me transformaste
ao sul
dos teus olhos.
Como uma ostra no fundo do mar
vou depositando esta pérola no coração
para te deixar.
2010-03-19
2010-03-12
a miar à tua janela
e trarei comigo
o mar dentro de um búzio.
Serei um peixe nas tuas ondas
Mediterrânicas.
Um polvo no teu fosso
Índico
Um mergulhador
na espuma da orla
Atlântica.
Um peixe-gato no oceano
Pacífico.
Um cavalo marinho
a trote
e a galope
o Mar Morto.
Esta noite. Só.
Serei um gato
Ou peixe gato.
2010-03-04
com os seios pendidos como pomos
arrojados à firmeza dos dentes
de gatos que ascendem com suas garras
e afrontam felinos as nádegas
subindo e descendo pelo seu tronco
para atravessar uma faca
na estreiteza da corrente
dessas mulheres que são vulcões tenebrosos
com fundas fossas de um abismo oceânico
donde se desprende a sua lava menstrual
dessas mulheres como peixes num aquário
à espreita da sua eternidade
ou da rebentação de uma onda de espuma
que lhes restitua num fôlego
o gemido.
2010-03-03
2010-02-23
cuja essência
era a ideia do seu ser
dentro de um casulo
a saber - uma lagarta.
Era por isso uma triste
e contemplativa borboleta
como um poema ferido na sua condição
concebido por um filósofo
idealista na construção
dialéctica de um sistema
onde a antítese
da borboleta
era o ser de um insecto
nocturno - uma traça.
Dois pares de asas membranosas
cobertas de escamas
e peças buçais adaptadas
à sucção das páginas
de todos os nomes do dicionário
com uma apurada capacidade
de mastigação do papel
definiam a natureza voraz da lagarta.
Uma assassina larvar inteligível
transformada pelo impulso
sensível do poeta
em mariposa.
2010-02-21
e aterrava na terra.
Se eu fosse uma gotinha de água regava os campos
e as flores do jardim.
Se eu fosse uma gotinha de água do oceano era salgada
e nadava nas ondas do mar com os peixes.
Se eu fosse uma gotinha de água era muito redonda
e límpida e transparente.
Se eu fosse uma gotinha de água deixava-me
beber para não morrer à sede.
Ana Beatriz Costa de Oliveira (8 anos)
2010-02-11
2010-02-02
penetrou no quarto
através da vidraça
e disse que a luz que lá havia
era o ardor de uma menina rebelde
com as órbitas dos olhos paralisadas
pelo espanto da combustão do seu coração
como os motores de um avião a jacto a arder
e a despenhar-se
com as suas asas transformadas
em duas bolas de fogo
como se fossem as asas de um anjo
inventado pelo malabarismo do poeta
para cantar o amor
para dentro da página em branco
para cantar a sua loucura
interior.
2010-01-15
2010-01-13
E se algum dia um psicanalista
me acusar de egocentrismo
e disser que finjo ser poeta
para fugir à realidade
e que cada verso
é uma tentativa absurda
de superar um desejo recalcado
direi que sim!
Direi que sim
porque quis escrever estes versos
enquanto não fazia outras coisas.
Depois desenharei ao psicanalista, uma mulher
redonda, uma mulher prenhe e redonda
tão redonda como a terra
mas talvez menos achatada no pólo sul
e com um fosso Índico onde nadam os peixes
dentro da vagina para rebentarem cabeças de alfinete
ou girinos à espreita de uma oportunidade
cirúrgica para dilacerar a sua fonte.
Desenharei sim!
Uma mulher prenhe e redonda
com dois relevos a norte donde nascem
rios de leite para matar a minha sede.
Desenharei sim!
E concluirei que não sou egocêntrico
mas um geocêntrico disfarçado de charuto
sentado à secretária de um consultório de psicanálise.
(história do último desejo do homem que queria ser poeta)
2009-12-28
e eu te encontre quando o sol estiver no momento do entardecer
não sabendo se vá ou se fique, amanhã vemo-nos de certeza.
Depois da tua aula de anatomia, depois da minha de geografia.
Vemo-nos porque tem de ser assim, vemo-nos porque os porquês
já não se admitem hoje e por isso é mais prático que nos vejamos.
Porque a tua é uma aula simples sobre o corpo
e a minha, igualmente simples, mas sobre a terra.
Vemo-nos depois das aulas que podiam ser ambas de metafísica
porque ambas são as duas, a minha e a tua estão antes da realidade
do mundo, do amor, da liberdade e da vida.
Vemo-nos amanhã, porque amanhã é um novo dia
os outros passaram na convicção histórica do que aconteceu
e filosófica futura do que teria sido se não acontecesse - assim.
Porque o sol não deixará de aparecer até que o último homem comprove
e na sua derradeira aparição o faça sorrir de tédio ou de cansaço.
Por saber que milhões e milhões de vezes o sol inspirou a vida
e a vida reconheceu a luz até à noite, amanhã vemos-nos.
Tu despida com a pele daquele vestido de seda ou de cetim
que te torneiam o corpo de mulher pronta e madura.
E eu despido também, mas com um nó de certezas na gravata
de que essa tua aparição é tão exacta como se estivesses
de bisturi na mão pronta a abrir-me as entranhas
na convicção de recolheres nas vísceras a minha alma.
Estarei com as mangas da camisa arregaçadas
para que comproves que os meus braços
em volta do teu corpo têm a mesma latitude.
Vemo-nos amanhã, para nos tornarmos
anatómica, geográfica e histórico-filosoficamente unidos
num abraço que dispensa o sol.
Afinal a noite traz o benefício de guardar a luz
para que os homens e as mulheres se conheçam pelo tacto.
Pour Ana Beatriz et son héros Gulliver
Tu verras, nous retournerons au point de départ
Et nous danserons ensemble vers l’oubli.
Peut-être que je n’arriverai plus chez toi
Il est peu probable que je trouve le chemin de retour.
Mes pieds s’emmêlent dans les cheveux
Et je suis fatigué de lutter contre les interminables murs
de tissu capillaire
la brutale machine de la trame des discours de dieu.
Dix canifs poussent de mes mains
Chacun est un couteau pour trouver le chemin
Chacun est une arme blanche pointée vers l’oubli
Chacun est un couteau pointé vers le mot oubli
Ou aux mots chemin et oubli.
Je garde dans mes poches les papiers que tu m’a donné
Les noms qui ont inventé chaque lettre de l’alphabet
La lettre qui a dessiné les numéros et les jours de la semaine.
Je suis couché à compter les jours, tu sais
Je ne sais pas d’où me sont nées les racines que j’ai dans les yeux
Chacune est un fleuve dans les miroirs, un morceau de moi dans les miroirs
Comme un bateau ancré ou à la dérive dans ce siècle.
J’écris pour lutter contre la folie de mourir à l’intérieur
Me souvenir de la pré histoire d’être lá avec moi, quand était-ce ?
Je ne sais pas quand sont nées ces cicatrices dans la chair ou dans les yeux
Certainement dans ton premier cri
Comme cent violons au plus profond de moi-même
Un hymne à la certitude de rester ici .
J’attendrai que le calendrier nous ramène vers le début
Et me rende dans la peau les années perdues dans ces papiers.
Qu’il me rende la certitude de ne pas oublier
Et dans les autres siècles de me souvenir
Du jour où je reviendrai, mon amour.
(agradeço a tradução à minha amiga e colega Sílvia Rodrigues)
2009-12-03
2009-11-27
agora que já não me ouves
gostava ainda de te dizer isto
quando te disse que te amo imaginava
ainda que continuaríamos de mãos dadas
como duas crianças no regresso da escola
mas acontece que na casa nova onde moro agora
há apenas as flores que me trazes aos sábados
e a caixa dos ossos onde me meteste num domingo
e por isso lembra-te que quando parti não foi porque
me tenhas dito que aquela casa onde moravamos os dois
era tua, só tua, de mais ninguém
não tens que te sentir uma assassina por me terem
encontrado morto se apenas pediste para te deixar só
porque no fundo eu só mudei de casa
meu amor.
(história do último desejo do homem que queria ser poeta)
2009-10-09
em que talvez encontres
o portão de uma velha casa.
Atreve-te a entrar - avança
um a um os degraus
até encontrares o quarto
onde encerrados
os meus olhos
se alagam de castigo.
Abre depois as janelas
para que a luz
se reflicta nas águas
onde mergulhado
eu sonhava
o infinito das horas
em que entardecias.
Dar-me-ás às mãos
o teu corpo a beber
e como se tu fosses
uma árvore,
eu felino
escalarei o teu tronco.
Ou como um pássaro,
me abrigarei dentro de ti
e quererei fazer ninho
dentro do teu tronco
e com o bico
desenharei o doce fruto.
2009-09-30
Às vezes tu sonhas que estás presa dentro de um novelo da lã
de onde não consegues sair por não encontrares o fio à meada.
Às vezes sonhas que dentro desse novelo há teias infinitas
de ideais e teorias que alguma aranha teceu para te perderes
e por não encontrares saída sentes na barriga um frio subterrâneo,
como aquele que sentem os mineiros de volfrâmio
sepultados pelo gás da mina.
E se nesse sonho eu entrasse para te resgatar do pânico
com um lírio cortado atravessado na minha boca
e pela janela do sonho pudesse sair contigo à varanda
para estendermos num arame a roupa da cama depois de lavada
os mesmos lençóis e cobertores de lã com pequeníssimas linhas cosidas
na mesma teia que algum filósofo inventou, decerto para sonharmos
Ou então para eu te poder chegar uma, a uma, as molas
para prendermos o nosso sonho ao sol quando houvesse sol
e também ao vento quando ventasse para segurarmos as pontas.
Sabes, também tenho noites em que acordo perdido no alto mar
e procuro outro barco onde houver quem me saiba ler as estrelas.
2009-09-22
onde a criança revolvia o passado
e dele nasciam ovos e embriões
de muitas mães celestiais
que eram truncados
pelo desejo dos filhos.
(...)Havia na casa dos avós
portas impensáveis por abrir
e a criança concebia uma máscara
para fingir que se encontrava
prisioneira do seu tamanho
porque estava sempre de cócoras
no presente e o futuro
era um tempo de outra altura.
(...)Até que um dia
a criança se levantou do silêncio
e voou da janela de casa
para que os pais assistissem
ao seu nascimento donde do fundo
da carne, da pele e dos ossos
se escreveu no céu uma nova língua
e se ergueu outra cidade.
2009-08-27
2009-06-23
surgiu a ave
que me bebeu
as metáforas
destes improváveis
versos.
No crepitar da lava
a que nos entregavámos
soçobraram cristais
e algumas pedras fundidas
tatuadas pelo arrefecimento
da superfície.
Pesam-me nas
pálpebras
os reflexos
do sol
de tempos antigos.
Porque há nos teus
cabelos um pincel
e estas mãos
com uma tinta indelével
a desaguar-me
dentro dos olhos.
2009-05-12
num lugar
muito antigo.
Eles entram-me em casa
como os amantes
de braços abertos
para nos apertarmos sem
misturarmos a raça
nem termos cadilhos de sangue
a pedir-nos o pão.
Os amigos que temos
de ter sempre
prontos para largar
como o vício do tabaco
a que ficamos agarrados
e que mesmo que se abandone
na verdade não nos abandona.
Os amigos que quando não
se encontram há muito tempo
parece que conservam a mesma
idade porque ainda trazem vestidos
os mesmos trapos de lã
que nos agasalharam
do frio glaciar onde caímos.
2009-05-07
A minha angústia não és tu, mas o desejo de tornar silenciosos os momentos para que o abismo dos dois jamais se volte a pronunciar, para que as nossas vozes se diluam num grito uníssono que a tua existência em mim tornou possível. Para que a minha voz deixe de ser a minha voz, e a tua, a tua, para que as nossas vozes não sejam apenas as nossas vozes, as nossas vozes um no outro, para que noutro lugar, noutro tempo, noutro espaço, onde houver silêncio, haja a marca edificante do amor, como qualquer coisa além de nós fundada pela presença que tivemos mutuamente.
A minha angústia não és tu, nem eu. A angústia é a certeza da minha aniquilação, a certeza do fim do tempo que tenho para cantar contigo, a certeza do definhamento dos meus gestos, das minhas palavras, a certeza de que, depois de mim, não te hei-de pertencer, não me hás-de pertencer.
Porque. Porque a minha angústia é ímpar e minha. Depois de mim nem sequer o sentimento de ter sido simplesmente um homem com medo de um dia deixar de te escutar.
2009-05-05
um presságio de mãe
que a implosão dos filhos
augura em seu interior.
Há em todas as mulheres
um regaço húmido e quente
em que os filhos perduram.
Há em todas as mulheres
um mar de sargaços
e girinos com cabeças de alfinete
à espreita da oportunidade
cirúrgica para dilacerar em seu íntimo
a sua fonte
e a sua verdade.
2009-02-17
para que saibas como
uma notícia de jornal escrita na
primeira página
que alguém te lê ao acordares
uma notícia que ninguém
espera como a morte.
Eu gostava de te dizer, amor antes que seja tarde
e se souberes ler o jornal olhos nos olhos
sem as lágrimas despoletadas pela circunstância
compreenderás que às vezes
o amor se escreve ao contrário
se escreve com as mesmas letras da cidade onde mora o papa
e é só isso.
Eu gostava de te dizer, amor mesmo depois
de me ter ido embora,
se te lembrares da carne que um dia fomos
perceberás que as letras com que o amor se escreveu não importam
se olhares para o fundo de nós amor
os teus olhos nos meus
a mesma luz que um arrepio bastou para apagar.
Eu gostava de te dizer que o nosso amor
foi muito mais do que as suas letras ao contrário
o nosso amor nunca se importou com o seu desenho
e se não quiseres que ele possa ser mais nada
a não ser este amor escrito e de papel
este amor num poema como notícia de primeira página
as letras da cidade ao contrário na primeira página...
Eu gostava de te dizer
gostava de ter sido eu a dar-te a notícia
sempre soube que o nosso amor
haveria de queimar como um trapo
por culpa de Pedro e dos cristãos
dessa cidade AMOR onde fomos imperadores
tu e eu como Nero a ver ROMA a arder e a cantar.
2009-02-11
Acabou de ruir. O desmoronamento foi provocado por um incêndio
no segundo andar onde um curto-circuito lhe incendiou o coração.
Há apenas uma vítima mortal a registar para além dos danos materiais avultados que implicam a reconstrução completa do edifício.
O porta-voz dos bombeiros afirmou que houve intenção criminosa
por detrás deste incêndio, dado que o coração da vítima mortal
apresentava nitidamente marcas de fogo posto.
A fonte energética usada pelo incendiário deverá ter sido feromona
com mistura de adrenalina num lança olhares
- produtos altamente inflamáveis e expansíveis.
Face à presença das labaredas que deflagraram no segundo piso
o coração da vítima foi incapaz de resistir
e acabou por falecer com queimaduras de terceiro grau.
A polícia não acolheu o álibi do presumível incendiário
e considerou provado que este tenha ateado o lume no segundo andar
de um piso de construção antiga e sem plano de emergência.
O incendiário afirmou que aquela hora se encontrava nu
e totalmente disponível para o amor
no mesmo prédio, no segundo andar e sem se queimar.
2009-02-03
Poema da decomposição
O poema da decomposição dos ossos da cabeça
frontais
temporais
parietais e occipitais.
O poema sobre a decomposição dos ossos da face
malar
maxilar
nasal e mandíbula.
O poema sobre a decomposição dos ossos dos ouvidos
martelo
bigorna
e estribo.
O poema sobre sobre a decomposição dos ossos do pescoço - hióide
e da cintura escapular
- omoplatas e clavículas.
Da decomposição da falta de ar do tórax - esternos e costelas
Da dos ossos começados por U como úmero
por R como rádio e que toca no lugar perto do cúbito.
Da decomposição do ossos das pernas - Fémur, tíbias e perónios
Ossos das mãos que são escafóides e semilunares que saltam trapézios
metatarsos, metacarpos
falanges, falanginhas e falangetas…
E ossos pélvicos com nomes púbicos que guardamos na cabeça
E o cóccix
de onde desaguam
a física das moléculas orgânicas e inorgânicas
astro-física e física das partículas atómicas
princípios de incerteza e teorias da relatividade.
Este é o poema da decomposição do músculo do coração a compasso
– sístole e diástole.
E das descargas eléctricas, protões e neutrões dentro dos átomos
e taquicardias e arritmias que descompassam o compasso
e vagões de protões e neutrões nos comboios a compasso também.
E mentes inquietas dentro dos comboios com os ossos por dentro
ossos de homens, mulheres e crianças com a sua filosofia
o princípio da natureza de que tudo é livre em ser livre de o não ser.
Este é o poema da decomposição.
2009-01-01
pelas vinte e três horas e cinquenta e nove minutos
reuniu na sala de jantar de casa de seus pais a família de dois mil e nove.
Eram exactamente zero horas do dia um quando a família de dois mil e nove
brindou de copo em riste: quatro, três, dois, um...
à saúde, à felicidade, ao amor.
A família de dois mil e nove é constituida pelo pai que sou eu
e as minhas duas filhas em dois mil e nove
precisamente às zero horas do dia um.
A mais velha, chama-se A.B. tem sete anos
lê e escreve com correcção sintática tanto o seu nome como o meu.
Gosta de futebol, de fazer fintas ao pai que sou eu e de andar de bicicleta.
A mais nova, L.M. dois anos e meio, é loira e menos parecida comigo
tem os olhos claros e gosta de bonecas.
Diz com correcção sintática e semântica que é linda.
Às zero horas do dia um de dois mil e nove
zero horas e um, dois, três minutos.... para ser mais exacto
na sala de jantar de casa da família de mil novecentos e setenta e três
com os meus pais a dormir
levantei o copo em riste
à saúde, à felicidade, ao amor
e bebi o champanhe.
Enquanto eu for vivo continuarei a beber o mesmo champanhe.
Daqui a duzentos anos ainda se levantará o copo em riste à saúde, à felicidade e ao amor
da única família que tenho no dia um de dois mil e nove.
2008-12-16
Diz
Podes dizer.
Podes dizer outra vez morte.
Podes dizer cicuta que eu estou pronto para a beber. Tenho virtude.
Podes dizer que ainda tenho pulmão que aguente. Diz
Que tu eu somos uma mentira inventada
Que os meus dentes amarelecidos não provam mais o teu sabor
Que o pão na mesa está passado
Que o amor é só sombra do seu fruto.Diz
Faz-me crer
Faz-me crer noutro mundo para lá da aurora
Faz-me crer flor venenosa
Flor sangrenta com o meu sangue nas unhas.
Faz-me crer.
Diz DISPARA de uma vez por todas.
Projecta o projéctil que não estava no projecto.
DIS-PA-RA o disparate. DIZ.
(Já é altura de calar o eco que fazes na cabeça).
2008-11-22
tanto como o relógio dos seus próprios ponteiros.
há um segundo atrás
dois segundos talvez para ser mais preciso
eu sabia a palavra exacta
era cão
pelo eco que faz na cabeça
cccaaaaaaaaãoãoãoãoãoãoãouuuuummmmm.
e o cão mordeu a morte sem darmos por isso
contabilizei exactamente quatro minutos e trinta e três segundos
nenhuma verdade.
o cão vadio de uma arma Vitor Charrasqueta de 1960
cartão, chumbo, feltro, copela, pólvora e fulminante deixado num dos canos
a mão esquerda no fuste
a face apoiada na coronha de madeira
o guarda-mato com gravura de flores e
o gatilho no indicador da mão direita.
dois meninos a brincar- um tiro certeiro só.
nenhuma verdade
em quatro minutos e trinta e três segundos
a espingarda disparou.
pppouuuuuummmmmmmmm.
tic,tac, tic, tac, tic, tac, tic, tac,
tic, tac, tic, tac,
tic,tac, tic,
tac,
tic
tac
(e o coração parou)
2008-11-01
dorme profundamente no leito de um livro
depois de escrever no seu interior.
umA mão de carne com LINhas de áGUA
e de gestos de pão
semeia os Dedos na carnE de um Livro
desvendA a página primeirA e dedilha as cordaS dos cabelos.
as MinhAs mãOS
duas
são irmãs que caminham para DentrO dos lIvroS
gémeas que desenham OLHOs doceS
Despedem sE com LetrAs matinais -bom dia
e outras incandEscentes de precipício - adeus.
As minhas mãos
aS minhas Mãos vazIas resguardam-se nos livros
soNHam casas pequenAS e quartos interiores sem luz.
as minhas MÃOS despRENDem-se dos lIvros
e Depois voltam a abrir as mesmas páginAS.
2008-10-28
2008-10-25
Poema premiado na IX edição do concurso nacional de poesia Agostinho Gomes em Oliveira de Azeméis
Obrigado Sílvia. Também foi teu este prémio. Concorreste sem me dizeres nada e ainda por cima colocaste o pseudónimo de Prometeu agrilhoado a estes versos.
2008-10-15
Percorri cem mil caminhos
em mil cidades passei
Se mil mulheres eu conheça
se com cem mulheres eu me deite
cem bocas me beijem, duzentas mãos que se abram
duzentos ouvidos que escutem
duzentos olhos que vejam...
Só dois eu quero que saibam
só dois eu quero que sintam
milhões de lugares onde estive
os cem mil caminhos andados
as mil cidades passadas
milhões de mulheres que eu olhei...
Por milhões de beijos que eu dê
os teus decerto eu queria
os teus, os únicos, não sei.
(o gato preto a atravessar a rua era só para despistar)
2008-06-17

Sou estas mãos que às palavras sombrias emprestam o gesto
a minha cabeça espasma-se saturada da obediência
e consulto as páginas amarelas do desespero
procurando outro corpo que me substitua.
***********************************************************************************
Esta noite outra noite vou pensando por mim mesmo num lugar fora do dicionário
um lugar que tenha outro corpo neste corpo que não este. Um lugar onde a palavra me substitua sem me substituir e a palavra EU seja verdadeiramente minha só minha de mais ninguem. Sei que sou este corpo escravo das palavras.Um corpo obediente a si mesmo nesta circunstância saturada de ir obedecendo para não morrer eternamente.Esta noite outra noite alguma coisa haverá no fim do verso. E mesmo que haja outro servo que ocupe o lugar não poderá escrever com estas mãos o meu poema. Bem sei que não lhe pertenço como não pertenço às árvores apesar de descansar na sua sombra.
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Ficarei de mãos cruzadas a assistir.
De mãos cruzadas rarefeito e a sorrir.
2008-03-14
e dançar juntos de encontro ao esquecimento.
Decerto não chegarei outra vez a tua casa
é improvavél que encontre o caminho do regresso.
Os meus pés enredam-se-me nos cabelos
e estou cansado de lutar contra os infindáveis muros
de tecido capilar
a máquina brutal da teia dos discursos de deus.
Crescem-me das mãos dez navalhas
cada uma é uma faca para encontrar o caminho
cada uma é uma faca apontada ao esquecimento
cada uma é uma faca apontada à própria palavra esquecimento
ou às palavras caminho e esquecimento.
Guardo nos bolsos os papéis que me deste
os nomes que inventaram cada uma das letras do alfabeto
a letra que desenhou os números e os dias da semana.
Estou aqui deitado a contar os dias, sabes
não sei de onde me nasceram as raízes que tenho nos olhos
cada uma é um rio nos espelhos, um pedaço de mim nos espelhos
como um barco ancorado ou à deriva neste século.
Escrevo para combater a loucura de morrer por dentro
lembrar a pré história de existires comigo, quando foi?
não sei quando nasceram estas cicatrizes na carne ou nos olhos
decerto no teu primeiro grito
como cem violinos no mais fundo de mim
um hino à certeza de aqui ficar com a certeza de aqui ficar.
Vou esperar que o calendário nos traga de volta
e me devolva na pele os anos perdidos nestes papéis.
que me devolva a certeza
de não esquecer
de ficar noutros séculos a lembrar
o dia em que hei-de voltar meu amor.
para a Ana Beatriz, para o seu dia do pai. A Gulliver que é o herói dela.
2007-07-20

2007-02-22

há uma hora certa para sair à rua
e outra para passear num jardim.
Há uma hora certa para o poema.
Uma espécie de porta do princípio do mundo.
Uma escada para a origem das palavras.
Há uma hora certa que não esta hora amarga,
uma hora de memória acesa que não deveria existir,
que fala por mim nestes versos mentais
e que apaga a minha centelha de poeta.
Se sou um poeta moribundo
que este poema se cale então
mas que ao menos ilumine a minha casa
e renove a luz desvairada da terra em que caminham os meus próprios pés…
No meu quarto vejo apenas flores mortas das mulheres azuis
que nunca me correram no sangue.]
Flores mortas que explodem no meu quarto e inundam a casa de mau cheiro.
Um cheiro podre de flores afogadas num jarro de porcelana.
E eu não quero sentir,
e eu não quero pensar,
nem sentir ou pensar, nem uma coisa, nem outra,
nem saber se faço parte da humanidade, ou se faço parte da multidão.
Eu não posso escrever mais versos, não posso.
Não posso porque tenho as mãos calejadas de trabalho mental.
Devia descansar as vistas nos sorrisos espalhados nas gavetas,
espalhados nas molduras, sorrisos perpétuos de rostos mortos do passado,
e ler outra vez os mesmos livros, sílaba a sílaba:
Siddartha e Ulisses,
O Admirável Mundo Novo.
Devia vestir outra vez as mesmas camisas e os mesmos casacos com bolas de naftalina nos bolsos.
Estou sentado na soleira da porta, e só estou a pensar.
Antes de escrever versos eu já pensava.
Quando eu era menino, eu já pensava.
Uma mulher passou descalça na rua:
Nos seus pés nus, nos seus olhos nus, na sua cabeça nua, nas suas mãos nuas]
abriram-se-me os olhos, outra vez – a hora certa.
Levantei da soleira da porta e fui atrás dela,
Enquanto corria atrás do seu perfume de mulher azul
lembrei o odor podre das flores mortas da minha casa verde.
E escutei a humanidade inteira que me calejou as mãos, o coração e a cabeça.
Sempre estive desperto para ver, mas decerto nunca soube escutar,
as vozes eternas dentro de mim:
Siddartha talvez reencontrasse Kamala quando atravessou o rio.
Ulisses regresssou a Ítaca mas não foi reconhecido.
A Sociedade dos Alfas, Betas e Gamas não se misturam.
O desejo de Eros e Psique nasceu na escuridão e no tacto
e Psique matou o amor verdadeiro com a luz de uma lamparina.
E eu não quero pensar,
Não quero ouvir mais estas vozes dentro de mim…
Há uma hora certa para tudo.
Se eu não fosse tão curioso, talvez fosse feliz.
Por causa de uns olhos nus eu levanto-me da soleira da porta de casa.
e é sempre o mesmo destino…
Não adianta que Eros me cante ao ouvido a sua morte.
Em cada Psíqué há uma mulher surda das minhas palavras.
e a minha boca é apenas uma língua dogmática de três cores
Com a certeza azul de um sexo pronto a abrir-me a sepultura.
E na hora certa, de novo a origem do poema.
O poema que me nasce dos pés e me atravessa a espinha.
O poema que me sobe pela cabeça como uma faca.
Que me devora a espuma do cérebro
e que me rebenta nos olhos para ver sempre a mesma coisa.
A hora certa do poema tornado a própria luz das palavras.
A hora certa do princípio e do fim do mundo.
2007-02-14

Não se podem desenterrar os mortos
podemos quando muito oferecer-lhes flores
flores cortadas a um jardim
flores mortas que se deitam ao chão em que repousam os mortos.
Se um dia eu morrer não quero que seja assim.
Plantem de mim o que resta debaixo do pinheiro manso da minha casa
do mais alto onde algumas pinhas se atiram maduras ao chão
e que os pinhões se semeiem nos meus ossos, no fémur, nas tíbias, no crânio, nos cabelos...
que os pinhões aproveitem toda a biodiversidade metafísica deste húmus
e um novo pinheiro manso se levante,
Um pinheiro ou uma roseira brava como a que existe ali mesmo ao lado.
Que nela pousem muitas abelhas e transportem para qualquer parte a minha flor
ou então que sejam as rolas, as rolas turcas que ali fazem ninho
que sejam elas a levar no papo o pinhão que resta de mim.
e a inteira biodiversidade metafísica do meu coração.
2007-02-07

uma morte de Prometeu
agrilhoado ao tabaco
ou à promessa
da nascente límpida dos teus olhos.
não dos meus.
Por esses olhos, por esses olhos Afrodite
acendo maços inteiros e maços inteiros.
O homem polui os rios e os oceanos
e eu também poluo o ar.
O teu ar e o meu
como um pirómano acabado de descobrir o fogo.
A justiça de Zeus e da paz no Olimpo condenou-me
e a minha culpa mortal e inocente do desejo vai-me matando devagar.
Aguardo que Heracles me venha salvar com a lança de Cupido
e trespasse esta águia que devora os meus pulmões.
Enquanto isso,acendo outro cigarro
porque afinal não tenho grilhões nas minhas mãos,nem as pernas cortadas.
Foi a ocasião que me fez ladrão ou a liberdade.
Para que o incêndio da boca renove o silêncio do corpo.
E uma nova morte, uma nova morte eu encontre lentamente neste cigarro
como se morresse lentamente num beijo
para sempre guardado nos teus olhos Afrodite.
2007-01-22
mas aquilo que os meus olhos vêem é pouco para dizer-te.
Vejo-te, é certo,
vejo-te como os outros reconhecem nos seus olhos
aquilo que decerto os meus também vêem nas vistas.
Ver é uma coisa para quem tem vistas
e não apenas para quem tem olhos.
E eu tenho vistas.
Às vezes são ouvidos, as vistas,
outras são estas mãos, ou o odor que o meu corpo respira quando passas.
Ver-te, ver-te, ver-te...
Só de te ver, em verde meu coração se transformaria
ou se tu fosses uma rosa, uma rosa vermelha como o sangue
que se agarra aos espinhos
de vermelho, por ti o meu coração também mataria.
Mas a vida é outra coisa, a vida é para quem tem olhos
e eu só tenho estas vistas.
Estas vistas cansadas dos escolhos dos abismos dos outros.
Vistas cansadas de te seguir na corrente onde mergulhaste.
Vistas exaustas por ter ficado ali, parado, a ver
e não a olhar - para onde?
para que mar?
Estou deitado na relva do meu jardim.
Ainda florescem as rosas
e eu descanso a vista.
2006-12-05

A teoria da literatura serve para matar a poesia e a alma dos poetas sugando-lhes o sangue das metáforas, como de resto fazem às musas. Envenenam de enxofre o processo de génese do poema, abortam a criatividade à nascença.
extremamente belas na cabeça
a poesia morreu vítima de homicídio involuntário.
2006-05-15

Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
mas uma necessária revolução arquitectónica
para que a casa não fique em ruínas.
Podeis tirar-lhe o telhado
arrombar as portas
partir o vidro das janelas.
A um canto da sala permanecerei sentado no sofá:
uma caneta na mão
um caderno aberto
e o chão que me sustenta
não sairá debaixo dos pés
até as formigas devorarem de fome
algum açúcar da poesia.
2006-02-22

ainda preservo intacta
a flor do teu sorriso.
se soubesses quanto estou contente
de a preservar,
talvez devolvesses ao mar os pesadelos
e guardasses aquele brilho
que um dia colheste nos meus olhos.
de ódio e de morte não se faz a arte
e por isso a luz
que se apagou no nosso quarto
estará acesa noutro quarto.
se soubesses como te guardo
como colho maravilhado noutros olhos
os teus olhos,
noutros lábios, os teus.
poderás ter desaparecido do horizonte
mas eu não terei morrido entretanto
e por isso
neste quarto ou noutro quarto,
nesta casa ou noutra casa,
haverá sempre um sorriso à porta de entrada.
o jardim da tua boca
a flor da amendoeira dos teus olhos
nos meus.
J.M. Oliveira 22-02-2006
2006-02-08
senta-te no meu regaço, abre um livro.
porque és mulher, pronta e madura
vem comigo adormecer a melancolia
das horas que se demoram
das noites e dos dias,
das noites e dos dias, dias e dias
em que me canso de dormir só.
senta-te no meu regaço e diz
“já gastámos as palavras pela rua meu amor”
“gastámos tudo menos os segredos”
e eu confessarei os segredos
“porque confesso que vivi”
vivi
“por não poder adiar o amor para outro século”
“por não poder adiar o coração”
“nem o meu grito”,
“nem a minha vida”.
lê comigo estes versos na areia deserta de uma praia qualquer
e repara
“ninguém como nós, meu amor, conhece o sol”.
ninguém como nós conhece
o sol ou o crepúsculo que ficará depois da poesia.
depois de nós, não restará um só meridiano da minha longitude
e o meu hálito a amoras silvestres colhidas em Maio
voltará a ser o hálito do tabaco frenético e de azeitonas.
“Porque não posso adiar este abraço que é uma arma de dois gumes”
porque não posso deixar para outra vida o meu desejo
nem a vontade.
quero fazer-te mulher, amante, amiga
porque não posso dispensar este sol, nem este oxigénio
nem as borboletas que salpicam de pólen a barriga
e me remoem os sentidos na febre de sentir
o indício do teu beijo, o verso do poema final.
J.M.Oliveira - Janeiro 2006
2006-01-27

vemo-nos amanhã.
amanhã talvez o dia seja mais luminoso
e eu te encontre ao fim da tarde,
quando o sol estiver no exacto momento do entardecer,
não sabendo se vá ou se fique,
amanhã vemo-nos de certeza.
depois da tua aula de anatomia,
depois da minha de geografia,
que podiam ser ambas de metafísica.
vemo-nos porque tem de ser assim,
vemo-nos porque os porquês já não se admitem nos dias de hoje.
por isso é mais fácil ou mais prático que nos vejamos.
porque a tua é uma aula simples sobre o corpo,
e a minha, igualmente simples, mas sobre a terra.
vemo-nos depois das aulas que são ambas metafísicas,
porque ambas são as duas,
e a minha e a tua são de certeza aulas sobre a essência do mundo,
e a essência das coisas é metafísica bastante,
tal como a liberdade, o amor e a vida.
vemo-nos amanhã, porque amanhã é que é dia,
os outros foram.
passaram na convicção do passado ser uma essência da história
entre o que aconteceu e o que ficou por acontecer.
por isso, nos vemos amanhã, porque amanhã é de novo dia,
porque o sol felizmente não se cansará de reaparecer
até que o último homem o comprove
e na sua derradeira aparição o faça sorrir de tédio
ou de cansaço.
por saber que milhões e milhões de vezes o sol inspirou a vida
e a vida reconheceu a luz até à noite,
amanhã vemos-nos.
tu vestida de noite com aquele vestido de cetim que te torneia o corpo de mulher pronta e madura
e eu amargurado pela certeza que essa tua aparição é tão exacta como se estivesses de bisturi na mão
pronta a abrir-me as entranhas na convicção de recolheres nas vísceras a minha alma. estarei com as mangas da camisa arregaçadas
para que comproves que os meus braços em volta do teu corpo têm a mesma latitude. vemo-nos amanhã,
na certeza de que nos tornaremos anatómica e geograficamente perfeitos,
únicos e absolutos num abraço que dispensa o sol.
afinal a noite tem esse benefício perfeito de esconder a luz
para que os homens e as mulheres se compreendam pelo tacto.
J.M.Oliveira 23/IV/2005

O inverno não é uma estação do ano. O inverno não é o frio, a neve, nem a chuva torrencial. O inverno é este corpo num pijama e estes cobertores na escuridão dum quarto, só. O inverno não é o Inverno dos bonecos de neve, dos pés à lareira com um copo de vinho partilhado. O inverno não é o Inverno da ceia de natal, nem dos presentes. O inverno é a ausência do calor do teu corpo, do raio de luz que desponta da retina dos teus olhos. o inverno são estas mãos frias da ausência de outras mãos. O inverno é a geografia humana deserta do horizonte. O inverno é este inferno e Sartre estava enganado.
J.M.Oliveira 27/I/2006