2007-07-20

"Eu queria de ti um país"

queria de ti um país

como aquele em que viveu Cesariny.

Não fui ainda capaz de te dizer,
sabes:

You are Welcome to Elsinore.


Para fazer de ti um país

atravessaria os muros habitados da fronteira

rasgava as cartas de marear culpadas de naufragar

e partia outra vez numa casca de noz rumo ao Oriente.


Eu queria de ti um país

E escutar silêncio na onda do teu sopro,

ao meu ouvido encantava apenas ouvir-te respirar,

para comprovares a verdade anatómica dos meus músculos

seria marinheiro sem saber nadar

morreria afogado na corrente dos teus olhos

pela luz que me deste a estes versos

com o músculo liso do coração aos tropeços.


Não fui capaz de te dizer que vi em ti o meu país,

pequeno,

do tamanho do meu quarto.


Nos teus lábios os meus nasceriam certamente

como as flores que nascem em Maio

geograficamente inclinadas para a nascente.


Por isso vem visitar-me

outro dia, outra noite:

You are always welcome to Elsinore


Farei dos versos um país com casas, caminhos, pontes

e de ti uma caixa de ressonância para o meu canto do cisne,

Agora.

Porque a morte pode não me querer esperar e eu quero um país para morrer.

2007-02-22

Há uma hora certa para abrir os olhos e outra para os fechar.
há uma hora certa para sair à rua
e outra para passear num jardim.

Há uma hora certa para o poema.
Uma espécie de porta do princípio do mundo.
Uma escada para a origem das palavras.


Há uma hora certa que não esta hora amarga,
uma hora de memória acesa que não deveria existir,
que fala por mim nestes versos mentais
e que apaga a minha centelha de poeta.

Se sou um poeta moribundo
que este poema se cale então
mas que ao menos ilumine a minha casa
e renove a luz desvairada da terra em que caminham os meus próprios pés…

No meu quarto vejo apenas flores mortas das mulheres azuis
que nunca me correram no sangue.]
Flores mortas que explodem no meu quarto e inundam a casa de mau cheiro.
Um cheiro podre de flores afogadas num jarro de porcelana.

E eu não quero sentir,
e eu não quero pensar,
nem sentir ou pensar, nem uma coisa, nem outra,
nem saber se faço parte da humanidade, ou se faço parte da multidão.

Eu não posso escrever mais versos, não posso.
Não posso porque tenho as mãos calejadas de trabalho mental.

Devia descansar as vistas nos sorrisos espalhados nas gavetas,
espalhados nas molduras, sorrisos perpétuos de rostos mortos do passado,
e ler outra vez os mesmos livros, sílaba a sílaba:
Siddartha e Ulisses,
O Admirável Mundo Novo.

Devia vestir outra vez as mesmas camisas e os mesmos casacos com bolas de naftalina nos bolsos.

Estou sentado na soleira da porta, e só estou a pensar.
Antes de escrever versos eu já pensava.
Quando eu era menino, eu já pensava.

Uma mulher passou descalça na rua:
Nos seus pés nus, nos seus olhos nus, na sua cabeça nua, nas suas mãos nuas]
abriram-se-me os olhos, outra vez – a hora certa.

Levantei da soleira da porta e fui atrás dela,
Enquanto corria atrás do seu perfume de mulher azul
lembrei o odor podre das flores mortas da minha casa verde.
E escutei a humanidade inteira que me calejou as mãos, o coração e a cabeça.

Sempre estive desperto para ver, mas decerto nunca soube escutar,
as vozes eternas dentro de mim:

Siddartha talvez reencontrasse Kamala quando atravessou o rio.

Ulisses regresssou a Ítaca mas não foi reconhecido.

A Sociedade dos Alfas, Betas e Gamas não se misturam.

O desejo de Eros e Psique nasceu na escuridão e no tacto

e Psique matou o amor verdadeiro com a luz de uma lamparina.


E eu não quero pensar,
Não quero ouvir mais estas vozes dentro de mim…


Há uma hora certa para tudo.

Se eu não fosse tão curioso, talvez fosse feliz.

Por causa de uns olhos nus eu levanto-me da soleira da porta de casa.
e é sempre o mesmo destino…
Não adianta que Eros me cante ao ouvido a sua morte.

Em cada Psíqué há uma mulher surda das minhas palavras.
e a minha boca é apenas uma língua dogmática de três cores
Com a certeza azul de um sexo pronto a abrir-me a sepultura.

E na hora certa, de novo a origem do poema.
O poema que me nasce dos pés e me atravessa a espinha.
O poema que me sobe pela cabeça como uma faca.
Que me devora a espuma do cérebro
e que me rebenta nos olhos para ver sempre a mesma coisa.

A hora certa do poema tornado a própria luz das palavras.
A hora certa do princípio e do fim do mundo.

2007-02-14














Não se podem desenterrar os mortos

podemos quando muito oferecer-lhes flores


flores cortadas a um jardim

flores mortas que se deitam ao chão em que repousam os mortos.




Se um dia eu morrer não quero que seja assim.

Plantem de mim o que resta debaixo do pinheiro manso da minha casa


do mais alto onde algumas pinhas se atiram maduras ao chão


e que os pinhões se semeiem nos meus ossos, no fémur, nas tíbias, no crânio, nos cabelos...

que os pinhões aproveitem toda a biodiversidade metafísica deste húmus
e um novo pinheiro manso se levante,

Um pinheiro ou uma roseira brava como a que existe ali mesmo ao lado.

Que nela pousem muitas abelhas e transportem para qualquer parte a minha flor

ou então que sejam as rolas, as rolas turcas que ali fazem ninho

que sejam elas a levar no papo o pinhão que resta de mim.

e a inteira biodiversidade metafísica do meu coração.

2007-02-07

Há uma morte lenta em cada cigarro
uma morte de Prometeu
agrilhoado ao tabaco
ou à promessa
da nascente límpida dos teus olhos.
não dos meus.

Por esses olhos, por esses olhos Afrodite
acendo maços inteiros e maços inteiros.

O homem polui os rios e os oceanos
e eu também poluo o ar.
O teu ar e o meu
como um pirómano acabado de descobrir o fogo.

A justiça de Zeus e da paz no Olimpo condenou-me
e a minha culpa mortal e inocente do desejo vai-me matando devagar.

Aguardo que Heracles me venha salvar com a lança de Cupido
e trespasse esta águia que devora os meus pulmões.

Enquanto isso,acendo outro cigarro
porque afinal não tenho grilhões nas minhas mãos,nem as pernas cortadas.

Foi a ocasião que me fez ladrão ou a liberdade.
Para que o incêndio da boca renove o silêncio do corpo.

E uma nova morte, uma nova morte eu encontre lentamente neste cigarro
como se morresse lentamente num beijo

para sempre guardado nos teus olhos Afrodite.

2007-01-22

Podia dizer-te como te vejo,
mas aquilo que os meus olhos vêem é pouco para dizer-te.
Vejo-te, é certo,
vejo-te como os outros reconhecem nos seus olhos
aquilo que decerto os meus também vêem nas vistas.
Ver é uma coisa para quem tem vistas
e não apenas para quem tem olhos.
E eu tenho vistas.
Às vezes são ouvidos, as vistas,
outras são estas mãos, ou o odor que o meu corpo respira quando passas.
Ver-te, ver-te, ver-te...
Só de te ver, em verde meu coração se transformaria
ou se tu fosses uma rosa, uma rosa vermelha como o sangue
que se agarra aos espinhos
de vermelho, por ti o meu coração também mataria.
Mas a vida é outra coisa, a vida é para quem tem olhos
e eu só tenho estas vistas.

Estas vistas cansadas dos escolhos dos abismos dos outros.
Vistas cansadas de te seguir na corrente onde mergulhaste.
Vistas exaustas por ter ficado ali, parado, a ver
e não a olhar - para onde?
para que mar?

Estou deitado na relva do meu jardim.
Ainda florescem as rosas
e eu descanso a vista.

2006-12-05

Para nomear mulheres os poetas dizem musas e por isso tudo o que aprendi das teorias da literatura sobre a inspiração poética está errado.
A teoria da literatura serve para matar a poesia e a alma dos poetas sugando-lhes o sangue das metáforas, como de resto fazem às musas. Envenenam de enxofre o processo de génese do poema, abortam a criatividade à nascença.

as musas são flores da cabeça
extremamente belas na cabeça
e com odores difíceis e inacessíveis ao faro da crítica literária.


podia dizer-vos que Platão estava certo com a sua alegoria
e que todas as mulheres sensíveis não são mulheres de verdade.
podia dizer-vos que as musas não são mulheres nem ninfas
mas fantasias celestes de um reino inteligível.
podia dizer tudo isso como fazem os críticos literários para matar o poema.
podia dizer que os poetas são mais felizes
quando as suas mãos estão ocupadas nas coxas ou cabelos de mulheres sensíveis.
dizer a todos vós que apreciais jornais e revistas
a poesia morreu vítima de homicídio involuntário.
foram os críticos que mataram o último verso
onde uma musa nascia do próprio poema.


Deixo-vos um verso só:

as musas são o sémen da cabeça.

(pedireis aos críticos literários que dissequem este último verso e o coloquem num tubo de ensaio para inseminar no futuro uma terra estéril onde a poesia não vive)

2006-05-15


Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
mas uma necessária revolução arquitectónica
para que a casa não fique em ruínas.

Podeis tirar-lhe o telhado
arrombar as portas
partir o vidro das janelas.

A um canto da sala permanecerei sentado no sofá:
uma caneta na mão
um caderno aberto
e o chão que me sustenta
não sairá debaixo dos pés
até as formigas devorarem de fome
algum açúcar da poesia.

2006-02-22


ainda preservo intacta
a flor do teu sorriso.
se soubesses quanto estou contente
de a preservar,
talvez devolvesses ao mar os pesadelos
e guardasses aquele brilho
que um dia colheste nos meus olhos.

de ódio e de morte não se faz a arte
e por isso a luz
que se apagou no nosso quarto
estará acesa noutro quarto.

se soubesses como te guardo
como colho maravilhado noutros olhos
os teus olhos,
noutros lábios, os teus.

poderás ter desaparecido do horizonte
mas eu não terei morrido entretanto
e por isso
neste quarto ou noutro quarto,
nesta casa ou noutra casa,
haverá sempre um sorriso à porta de entrada.

o jardim da tua boca
a flor da amendoeira dos teus olhos
nos meus.

J.M. Oliveira 22-02-2006

2006-02-08

Adeus dos outros

senta-te no meu regaço, abre um livro.
porque és mulher, pronta e madura
vem comigo adormecer a melancolia
das horas que se demoram
das noites e dos dias,
das noites e dos dias, dias e dias
em que me canso de dormir só.
senta-te no meu regaço e diz
“já gastámos as palavras pela rua meu amor”
“gastámos tudo menos os segredos”
e eu confessarei os segredos
“porque confesso que vivi”
vivi
“por não poder adiar o amor para outro século”
“por não poder adiar o coração”
“nem o meu grito”,
“nem a minha vida”.
lê comigo estes versos na areia deserta de uma praia qualquer
e repara
“ninguém como nós, meu amor, conhece o sol”.
ninguém como nós conhece
o sol ou o crepúsculo que ficará depois da poesia.
depois de nós, não restará um só meridiano da minha longitude
e o meu hálito a amoras silvestres colhidas em Maio
voltará a ser o hálito do tabaco frenético e de azeitonas.
“Porque não posso adiar este abraço que é uma arma de dois gumes”
porque não posso deixar para outra vida o meu desejo
nem a vontade.
quero fazer-te mulher, amante, amiga
porque não posso dispensar este sol, nem este oxigénio
nem as borboletas que salpicam de pólen a barriga
e me remoem os sentidos na febre de sentir
o indício do teu beijo, o verso do poema final.

J.M.Oliveira - Janeiro 2006

2006-01-27

Galatea das esferas

pudesse eu talhar em palavras
o teu corpo
e dizê-lo adormecido
e leve
como agora vejo
vestir de tinta a nudez
que enlouquece a mão quando pinto
e descobrir-te novamente no clamor
pudesse eu perseguir
o teu esplendor
e tu saberes ser
toda a literatura

J.M.Oliveira 25/VIII/2000

vemo-nos amanhã.
amanhã talvez o dia seja mais luminoso
e eu te encontre ao fim da tarde,
quando o sol estiver no exacto momento do entardecer,
não sabendo se vá ou se fique,
amanhã vemo-nos de certeza.
depois da tua aula de anatomia,
depois da minha de geografia,
que podiam ser ambas de metafísica.
vemo-nos porque tem de ser assim,
vemo-nos porque os porquês já não se admitem nos dias de hoje.
por isso é mais fácil ou mais prático que nos vejamos.
porque a tua é uma aula simples sobre o corpo,
e a minha, igualmente simples, mas sobre a terra.
vemo-nos depois das aulas que são ambas metafísicas,
porque ambas são as duas,
e a minha e a tua são de certeza aulas sobre a essência do mundo,
e a essência das coisas é metafísica bastante,
tal como a liberdade, o amor e a vida.
vemo-nos amanhã, porque amanhã é que é dia,
os outros foram.
passaram na convicção do passado ser uma essência da história
entre o que aconteceu e o que ficou por acontecer.
por isso, nos vemos amanhã, porque amanhã é de novo dia,
porque o sol felizmente não se cansará de reaparecer
até que o último homem o comprove
e na sua derradeira aparição o faça sorrir de tédio
ou de cansaço.
por saber que milhões e milhões de vezes o sol inspirou a vida
e a vida reconheceu a luz até à noite,
amanhã vemos-nos.
tu vestida de noite com aquele vestido de cetim que te torneia o corpo de mulher pronta e madura
e eu amargurado pela certeza que essa tua aparição é tão exacta como se estivesses de bisturi na mão
pronta a abrir-me as entranhas na convicção de recolheres nas vísceras a minha alma. estarei com as mangas da camisa arregaçadas
para que comproves que os meus braços em volta do teu corpo têm a mesma latitude. vemo-nos amanhã,
na certeza de que nos tornaremos anatómica e geograficamente perfeitos,
únicos e absolutos num abraço que dispensa o sol.
afinal a noite tem esse benefício perfeito de esconder a luz
para que os homens e as mulheres se compreendam pelo tacto.

J.M.Oliveira 23/IV/2005

O inverno não é uma estação do ano. O inverno não é o frio, a neve, nem a chuva torrencial. O inverno é este corpo num pijama e estes cobertores na escuridão dum quarto, só. O inverno não é o Inverno dos bonecos de neve, dos pés à lareira com um copo de vinho partilhado. O inverno não é o Inverno da ceia de natal, nem dos presentes. O inverno é a ausência do calor do teu corpo, do raio de luz que desponta da retina dos teus olhos. o inverno são estas mãos frias da ausência de outras mãos. O inverno é a geografia humana deserta do horizonte. O inverno é este inferno e Sartre estava enganado.

J.M.Oliveira 27/I/2006

2004-02-02

Sei que me encontrarás de novo porque estarei sempre neste lugar.
Entre a tua e a minha sombra ficarei sempre perto.

2004-01-14

A palavra pode ser a única farmácia de serviço na noite da derradeira prescrição médica.