2006-12-05

Para nomear mulheres os poetas dizem musas e por isso tudo o que aprendi das teorias da literatura sobre a inspiração poética está errado.
A teoria da literatura serve para matar a poesia e a alma dos poetas sugando-lhes o sangue das metáforas, como de resto fazem às musas. Envenenam de enxofre o processo de génese do poema, abortam a criatividade à nascença.

as musas são flores da cabeça
extremamente belas na cabeça
e com odores difíceis e inacessíveis ao faro da crítica literária.


podia dizer-vos que Platão estava certo com a sua alegoria
e que todas as mulheres sensíveis não são mulheres de verdade.
podia dizer-vos que as musas não são mulheres nem ninfas
mas fantasias celestes de um reino inteligível.
podia dizer tudo isso como fazem os críticos literários para matar o poema.
podia dizer que os poetas são mais felizes
quando as suas mãos estão ocupadas nas coxas ou cabelos de mulheres sensíveis.
dizer a todos vós que apreciais jornais e revistas
a poesia morreu vítima de homicídio involuntário.
foram os críticos que mataram o último verso
onde uma musa nascia do próprio poema.


Deixo-vos um verso só:

as musas são o sémen da cabeça.

(pedireis aos críticos literários que dissequem este último verso e o coloquem num tubo de ensaio para inseminar no futuro uma terra estéril onde a poesia não vive)

2006-05-15


Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
mas uma necessária revolução arquitectónica
para que a casa não fique em ruínas.

Podeis tirar-lhe o telhado
arrombar as portas
partir o vidro das janelas.

A um canto da sala permanecerei sentado no sofá:
uma caneta na mão
um caderno aberto
e o chão que me sustenta
não sairá debaixo dos pés
até as formigas devorarem de fome
algum açúcar da poesia.

2006-02-22


ainda preservo intacta
a flor do teu sorriso.
se soubesses quanto estou contente
de a preservar,
talvez devolvesses ao mar os pesadelos
e guardasses aquele brilho
que um dia colheste nos meus olhos.

de ódio e de morte não se faz a arte
e por isso a luz
que se apagou no nosso quarto
estará acesa noutro quarto.

se soubesses como te guardo
como colho maravilhado noutros olhos
os teus olhos,
noutros lábios, os teus.

poderás ter desaparecido do horizonte
mas eu não terei morrido entretanto
e por isso
neste quarto ou noutro quarto,
nesta casa ou noutra casa,
haverá sempre um sorriso à porta de entrada.

o jardim da tua boca
a flor da amendoeira dos teus olhos
nos meus.

J.M. Oliveira 22-02-2006

2006-02-08

Adeus dos outros

senta-te no meu regaço, abre um livro.
porque és mulher, pronta e madura
vem comigo adormecer a melancolia
das horas que se demoram
das noites e dos dias,
das noites e dos dias, dias e dias
em que me canso de dormir só.
senta-te no meu regaço e diz
“já gastámos as palavras pela rua meu amor”
“gastámos tudo menos os segredos”
e eu confessarei os segredos
“porque confesso que vivi”
vivi
“por não poder adiar o amor para outro século”
“por não poder adiar o coração”
“nem o meu grito”,
“nem a minha vida”.
lê comigo estes versos na areia deserta de uma praia qualquer
e repara
“ninguém como nós, meu amor, conhece o sol”.
ninguém como nós conhece
o sol ou o crepúsculo que ficará depois da poesia.
depois de nós, não restará um só meridiano da minha longitude
e o meu hálito a amoras silvestres colhidas em Maio
voltará a ser o hálito do tabaco frenético e de azeitonas.
“Porque não posso adiar este abraço que é uma arma de dois gumes”
porque não posso deixar para outra vida o meu desejo
nem a vontade.
quero fazer-te mulher, amante, amiga
porque não posso dispensar este sol, nem este oxigénio
nem as borboletas que salpicam de pólen a barriga
e me remoem os sentidos na febre de sentir
o indício do teu beijo, o verso do poema final.

J.M.Oliveira - Janeiro 2006

2006-01-27

Galatea das esferas

pudesse eu talhar em palavras
o teu corpo
e dizê-lo adormecido
e leve
como agora vejo
vestir de tinta a nudez
que enlouquece a mão quando pinto
e descobrir-te novamente no clamor
pudesse eu perseguir
o teu esplendor
e tu saberes ser
toda a literatura

J.M.Oliveira 25/VIII/2000

vemo-nos amanhã.
amanhã talvez o dia seja mais luminoso
e eu te encontre ao fim da tarde,
quando o sol estiver no exacto momento do entardecer,
não sabendo se vá ou se fique,
amanhã vemo-nos de certeza.
depois da tua aula de anatomia,
depois da minha de geografia,
que podiam ser ambas de metafísica.
vemo-nos porque tem de ser assim,
vemo-nos porque os porquês já não se admitem nos dias de hoje.
por isso é mais fácil ou mais prático que nos vejamos.
porque a tua é uma aula simples sobre o corpo,
e a minha, igualmente simples, mas sobre a terra.
vemo-nos depois das aulas que são ambas metafísicas,
porque ambas são as duas,
e a minha e a tua são de certeza aulas sobre a essência do mundo,
e a essência das coisas é metafísica bastante,
tal como a liberdade, o amor e a vida.
vemo-nos amanhã, porque amanhã é que é dia,
os outros foram.
passaram na convicção do passado ser uma essência da história
entre o que aconteceu e o que ficou por acontecer.
por isso, nos vemos amanhã, porque amanhã é de novo dia,
porque o sol felizmente não se cansará de reaparecer
até que o último homem o comprove
e na sua derradeira aparição o faça sorrir de tédio
ou de cansaço.
por saber que milhões e milhões de vezes o sol inspirou a vida
e a vida reconheceu a luz até à noite,
amanhã vemos-nos.
tu vestida de noite com aquele vestido de cetim que te torneia o corpo de mulher pronta e madura
e eu amargurado pela certeza que essa tua aparição é tão exacta como se estivesses de bisturi na mão
pronta a abrir-me as entranhas na convicção de recolheres nas vísceras a minha alma. estarei com as mangas da camisa arregaçadas
para que comproves que os meus braços em volta do teu corpo têm a mesma latitude. vemo-nos amanhã,
na certeza de que nos tornaremos anatómica e geograficamente perfeitos,
únicos e absolutos num abraço que dispensa o sol.
afinal a noite tem esse benefício perfeito de esconder a luz
para que os homens e as mulheres se compreendam pelo tacto.

J.M.Oliveira 23/IV/2005

O inverno não é uma estação do ano. O inverno não é o frio, a neve, nem a chuva torrencial. O inverno é este corpo num pijama e estes cobertores na escuridão dum quarto, só. O inverno não é o Inverno dos bonecos de neve, dos pés à lareira com um copo de vinho partilhado. O inverno não é o Inverno da ceia de natal, nem dos presentes. O inverno é a ausência do calor do teu corpo, do raio de luz que desponta da retina dos teus olhos. o inverno são estas mãos frias da ausência de outras mãos. O inverno é a geografia humana deserta do horizonte. O inverno é este inferno e Sartre estava enganado.

J.M.Oliveira 27/I/2006

2004-02-02

Sei que me encontrarás de novo porque estarei sempre neste lugar.
Entre a tua e a minha sombra ficarei sempre perto.

2004-01-14

A palavra pode ser a única farmácia de serviço na noite da derradeira prescrição médica.