2024-08-30

S.O.S.

Olha nos meus olhos e diz que não me queres.

Direi que mentes porque o brilho dos teus olhos

ainda espelha a espuma das ondas

que se enrolam na areia da praia

onde plantamos o coração.

Olha nos meus olhos e diz que não me queres.

Direi que mentes porque o verde dos teus olhos são o mar

onde luzem os meus olhos da cor dos sargaços

que abrigam os polvos com os seus tentáculos.

E por isso não mintas ao dizer que não me queres.

Não mintas porque sabes que quando me encontraste

eu era um gato velho e vadio com menos que sete vidas

pronto a escalar o teu tronco para habitar dentro de ti.

Não me mintas porque sabes bem que és um aquário

onde mascarado de peixe gato eu quis mergulhar para sempre.

 

Olha nos meus olhos e diz que não me queres mais.

E se o disseres, como se fosse um pássaro eu levantarei voo

do ninho que teci no teu tronco para me fortalecer

ou como um polvo alimentado pelos crustáceos dos sargaços

do teu mar eu soltarei os meus tentáculos.

E como um albatroz planarei o oceano sem fim

até avistar o continente para pousar na areia da praia

e alongar as minhas asas enquanto assisto ao pôr do sol.

Depois escavarei com o bico a areia branca até encontrar o vidro

que se reflete nas tuas águas para desenterrar as raízes

deste poema onde sepultei o meu coração.

29/08/2024 


2023-10-27

Quase o último poema

Quando acontecer de algum dia me esquecer de ti

não te preocupes.

Se estou esquecido é porque os vagões do tempo me levaram para universos distantes

e eu ainda espero lembrar as coisas mais simples

aquelas que se escutam no intervalo do vento 

e que nos aconchegam 

como uma voz de rouxinol 

que nos despertou 

ao cantar no parapeito da janela 

de um coração arritmado 

a que se agarraram as mãos

de quando eu era criança  

que questionava o existir da tristeza

tão depressa a seguir à alegria

ou porque desaguavam nos nossos olhos

os rios e as torrentes 

que fariam falta aos desertos.


José Miguel de Oliveira (26-05-2023)

2020-04-09


estava a pensar pedir-te
uma fotografia para emoldurar
no caixilho
do meu coração

e que estivesses ciente
de que se a conseguir lá colar
será pouco provável
que alguma vez ela possa sair

mas se por acaso ela esvoaçar
com o pânico de aí se perder...
sabe que eu deixarei a janela aberta

porque ela está sempre aberta
para entrar quem quer entrar
e como se fecha por dentro

também a podes abrir.

2019-04-15

Uma justiça para fazer a homenagem à Sílvia que perdi na tradução ... 

Tu verras, nous retournerons au point de départ
Et nous danserons ensemble vers l’oubli.
Peut-être que je n’arriverai plus chez toi
Il est peu probable que je trouve le chemin de retour.
Mes pieds s’emmêlent dans les cheveux
Et je suis fatigué de lutter contre les interminables murs
de tissu capillaire
la brutale machine de la trame des discours de dieu.
Dix canifs poussent de mes mains
Chacun est un couteau pour trouver le chemin
Chacun est une arme blanche pointée vers l’oubli
Chacun est un couteau pointé vers le mot oubli
Ou aux mots chemin et oubli.
Je garde dans mes poches les papiers que tu m’a donné
Les noms qui ont inventé chaque lettre de l’alphabet
La lettre qui a dessiné les numéros et les jours de la semaine.
Je suis couché à compter les jours, tu sais
Je ne sais pas d’où me sont nées les racines que j’ai dans les yeux
Chacune est un fleuve dans les miroirs, un morceau de moi dans les miroirs
Comme un bateau ancré ou à la dérive dans ce siècle.
J’écris pour lutter contre la folie de mourir à l’intérieur
Me souvenir de la pré histoire d’être lá avec moi, quand était-ce ?
Je ne sais pas quand sont nées ces cicatrices dans la chair ou dans les yeux
Certainement dans ton premier cri
Comme cent violons au plus profond de moi-même
Un hymne à la certitude de rester ici .
J’attendrai que le calendrier nous ramène vers le début
Et me rende dans la peau les années perdues dans ces papiers.
Qu’il me rende la certitude de ne pas oublier
Et dans les autres siècles de me souvenir
Du jour où je reviendrai, mon amour.
Pour A. B et son héros Gulliver

2019-03-29

Lara

Sabes filha, ainda lembro aquele dia
em que adormeceste pela primeira vez nos meus braços.
Regressavas das águas onde cresceste como um girino
aproveitando a abundância do plâncton da tua mãe
para te transformares em peixinho.
Aos primeiros raios de luz já eras uma sereia. 
Quando secaram o teu corpo e a tua cabeça emparedou no meu coração
para sermos um violino eu e tu. 
O dó, ré, mi, fã, lá, si, dó 
das sístoles e diástoles
do nosso hino à alegria
como se fossemos as cordas
e o instrumento
das mesmas notas musicais
dos ideais da Europa.
Li nas escamas tatuadas na tua pele
uma sinfonia de paz que me adormeceu
ao som de Beethoven
como se sonhasse um novo mar por navegar.
E senti reincarnar em Camões
com o desejo de avistar a Índia
ou âncorar outra vez
na ilha dos amores para te deixar um mapa.
Tentei escrever na mesma língua
e com as mesmas notas musicais.
Trauteei o dó, ré, mi, fá, lá, si, dó
como se pensasse com a cabeça
de um amblíope e de um surdo num só
ou o arbítrio da visão e dos tímpanos
que se quiseram fechar
por genealidade poético-musical de um Ludwig.
E agora?
Como um náufrago que regressa do fundo do mar
ou à corrente que me levantou
para prescutar a beleza do primeiro tom
da tua voz de menina
e comprovasse nas tuas mãos
o dedilhar das cordas de uma harpa
que quebrasse o encantamento
para que eu te pudesse reencontrar
nas palavras.
"Ainda podemos cantar papá?".
Sim! Ainda te guardo num aquário onde serás sempre um girino-peixe
transformado em sereia
com vontade de nascer do oceano
deste poema.
E mesmo que se desafine o meu coração
na sua arritmia, esse sopro vital da poesia do meio
e ao centro das tuas irmãs
que irradia da luz dos teus olhos.
Porque me desenhaste também
dentro de ti, para comprovarmos
a estrela polar, a lua e o sol. 
No céu noturno está escrito
o nosso sonho e os teus sorrisos nas águas que me amanhecem nos olhos.
Aquele porto e aquela praia onde mergulhamos
aqui e além mar.
É no espelho dos teus olhos
da mesma cor centrípeta
dos sargaço que conservam a doçura do mel
que se revela o mistério
da profundeza das águas
e do abismo...
Daí regressarei um dia
para te escutar outra vez:
"Também te amo muito papá! ".

Acenarei que sim
e ficarei sempre contigo
para um novo hino à alegria
Larinha.

José Miguel Oliveira
(para a Lara no dia em que fez 13 anos)

2019-02-20

Amei como a estrada começa
Levando comigo
cada um dos meus amores.

Conservei-os dentro de mim
sem a angústia de que morressem à sede
no deserto de os deixar.

Por não encontrar nenhum indício do regresso
Batizei-me para me lavar do medo
de não voltar ao ponto de partida...

E descobri dentro de mim duas mãos
na cabeça de um santo de barro
que me acalentaram o coração.

Ainda não tenho as pernas cansadas
nem a saliva me falta para narrar a minha fé.

Um dia talvez a estrada me vença!

Para amar como a estrada começa
há que deixar um vestígio que oriente o caminho

de outro peregrino.

2014-03-20

Para celebrar 10 anos deste blogue... Foi assim que ele começou no dia 14 de Janeiro de 2004:

2004-01-14

A palavra pode ser a única farmácia de serviço na noite da derradeira prescrição médica.

2014-02-25

As ondas do mar são como as mulheres
às vezes serenas e dóceis,
como a frescura de um baptismo
que nos lava da certeza
de uma morte infinita.

 Outras vezes agigantam-se
 e são um mar revolto de fome
 e de sede
 de conquista da terra.

Agigantam-se tenebrosamente
para engolir a servil lida masculina
e são a espuma a borbulhar
como o clamor de um mar exaltado.

Essas mulheres com íntimos abismos
de uma profundidade oceânica
elas são o vício e o precipício
que enleva a nossa verticalidade.

Elas são o oceano da nossa alegria.

2013-11-28

para o pescador 
Que seja decretado ao mar
um minuto de silêncio
e que não se inquiete o lamento 
nem a saudade da mulher
onde o pescador
embarcou o coração.

Diante de nós o seu tamanho 
é de uma altura igual
ao das ondas gigantes 
aquelas que ultrapassam
o limite vertical da distância
entre os olhos

o ponto mais baixo
para o qual a água desce.



2013-05-08

Quando me sentir estar morto decidirei talvez procurar uma lente para minuciar aquilo que perdi por obnubilação das vistas.
(Não dos olhos, que esses míopes, nem um palmo conseguem ver à sua frente, devido à condição sociopolítica de um meio ambiente de esquizofrenia paranoide com alucinações e delírios que subjugam o direito inalienável à manutenção do corpo e da vida condigna).
Vistas inquietas que me fogem para lá da fronteira destas quatro paredes porque a sua condição é unicamente a política externa da alucinação guliveriana das mamas da vizinha.
Horizonte é delírio bastante  para zarpar pela janela e ir direto ao assunto ou não fosse a minha condição geoestratégica impossibilitante devido ao formigueiro liliputiano de um viriato aquartelado em quatro paredes.
Estou a imaginá-la, por magia, nua, em frente ao espelho com os seios apontados como faróis à mesa das negociações, sem a consciência dos olhos vir ao de cima,  ao mesmo tempo que as vistas deambulam num solilóquio interior com sintomas de apoplexia provocada pela casa da vizinha pregada ao televisor.
Apoplexia provocada pelo derrame quimérico de que cada um de nós pode viver uma vida inteira sem rugas, nem patas de galinha a comerem-nos os olhos.
Nenhum espelho capaz de nos devolver a singular e universal condição humana crescente e senescente que nos faça aproximar da origem...

E por isso, quando sentir que estiver morto, o melhor é permanecer de olhos fechados e com a cara tapada
e guardar o último e fugaz sorriso sem desvios oftalmológicos
nas nuvens de amor e de tabaco -
em ambos casos produzidas pela combustão das bocas...
em ambos os casos um vício
ou um precipício do espelho do que somos...

2011-10-27

Era uma vez um prego que se soltou
da ferradura do cavalo de um general.

Era uma vez uma ferradura que se soltou
da pata do cavalo de um general.

Era uma vez um cavalo coxo de um general
que fez cair abaixo da cela o general.

Era uma vez uma força do exército de um general
uma força do exército sem comando do general.

E assim como assim
devido à causa primeira,
segunda e terceira
toda a infantaria caiu
depois a cavalaria caiu
depois a artilharia foi bombardeada
depois a engenharia ruiu
depois a intendência fugiu
depois a comunicação deixou de ser comunicação.

Era uma vez um país que perdeu a guerra
por causa de um prego que se soltou
da ferradura do cavalo
de um general...

Um prego?!

2011-03-21

Ainda que todas as bocas se arrebatam ao som do hino de trompetes e que a noite pese séculos e séculos de silêncio cantando os naufrágios dos moinhos de vento cantando os naufrágios dos faróis da ilusão. Ainda que a manhã indecisa demore e que gigantescas ondas se abatam turbulentas inquebrantáveis ondas que nos varram deste chão e que a todos os homens e mulheres emudeçam. Ainda que o mar engula todos os navios e barcos usurpando o perfume de Penélope em terra no último fôlego de Ulisses... Um poeta é quanto baste para o erguer do abismo e os vermes não calarão o seu grito. * dia Mundial da Poesia - Bilioteca Municipal de Vila do Conde

2011-02-04

apetece-me abrir-te
e escalar-te
como se fosses um peixe
de prata
revolver-te no lume
que se atiça
nas furnas da pele
e dar-te a beber
da originária fonte
a torrente
que se inunda
na boca.