2007-02-22

Há uma hora certa para abrir os olhos e outra para os fechar.
há uma hora certa para sair à rua
e outra para passear num jardim.

Há uma hora certa para o poema.
Uma espécie de porta do princípio do mundo.
Uma escada para a origem das palavras.


Há uma hora certa que não esta hora amarga,
uma hora de memória acesa que não deveria existir,
que fala por mim nestes versos mentais
e que apaga a minha centelha de poeta.

Se sou um poeta moribundo
que este poema se cale então
mas que ao menos ilumine a minha casa
e renove a luz desvairada da terra em que caminham os meus próprios pés…

No meu quarto vejo apenas flores mortas das mulheres azuis
que nunca me correram no sangue.]
Flores mortas que explodem no meu quarto e inundam a casa de mau cheiro.
Um cheiro podre de flores afogadas num jarro de porcelana.

E eu não quero sentir,
e eu não quero pensar,
nem sentir ou pensar, nem uma coisa, nem outra,
nem saber se faço parte da humanidade, ou se faço parte da multidão.

Eu não posso escrever mais versos, não posso.
Não posso porque tenho as mãos calejadas de trabalho mental.

Devia descansar as vistas nos sorrisos espalhados nas gavetas,
espalhados nas molduras, sorrisos perpétuos de rostos mortos do passado,
e ler outra vez os mesmos livros, sílaba a sílaba:
Siddartha e Ulisses,
O Admirável Mundo Novo.

Devia vestir outra vez as mesmas camisas e os mesmos casacos com bolas de naftalina nos bolsos.

Estou sentado na soleira da porta, e só estou a pensar.
Antes de escrever versos eu já pensava.
Quando eu era menino, eu já pensava.

Uma mulher passou descalça na rua:
Nos seus pés nus, nos seus olhos nus, na sua cabeça nua, nas suas mãos nuas]
abriram-se-me os olhos, outra vez – a hora certa.

Levantei da soleira da porta e fui atrás dela,
Enquanto corria atrás do seu perfume de mulher azul
lembrei o odor podre das flores mortas da minha casa verde.
E escutei a humanidade inteira que me calejou as mãos, o coração e a cabeça.

Sempre estive desperto para ver, mas decerto nunca soube escutar,
as vozes eternas dentro de mim:

Siddartha talvez reencontrasse Kamala quando atravessou o rio.

Ulisses regresssou a Ítaca mas não foi reconhecido.

A Sociedade dos Alfas, Betas e Gamas não se misturam.

O desejo de Eros e Psique nasceu na escuridão e no tacto

e Psique matou o amor verdadeiro com a luz de uma lamparina.


E eu não quero pensar,
Não quero ouvir mais estas vozes dentro de mim…


Há uma hora certa para tudo.

Se eu não fosse tão curioso, talvez fosse feliz.

Por causa de uns olhos nus eu levanto-me da soleira da porta de casa.
e é sempre o mesmo destino…
Não adianta que Eros me cante ao ouvido a sua morte.

Em cada Psíqué há uma mulher surda das minhas palavras.
e a minha boca é apenas uma língua dogmática de três cores
Com a certeza azul de um sexo pronto a abrir-me a sepultura.

E na hora certa, de novo a origem do poema.
O poema que me nasce dos pés e me atravessa a espinha.
O poema que me sobe pela cabeça como uma faca.
Que me devora a espuma do cérebro
e que me rebenta nos olhos para ver sempre a mesma coisa.

A hora certa do poema tornado a própria luz das palavras.
A hora certa do princípio e do fim do mundo.

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