2006-01-27

Galatea das esferas

pudesse eu talhar em palavras
o teu corpo
e dizê-lo adormecido
e leve
como agora vejo
vestir de tinta a nudez
que enlouquece a mão quando pinto
e descobrir-te novamente no clamor
pudesse eu perseguir
o teu esplendor
e tu saberes ser
toda a literatura

J.M.Oliveira 25/VIII/2000

vemo-nos amanhã.
amanhã talvez o dia seja mais luminoso
e eu te encontre ao fim da tarde,
quando o sol estiver no exacto momento do entardecer,
não sabendo se vá ou se fique,
amanhã vemo-nos de certeza.
depois da tua aula de anatomia,
depois da minha de geografia,
que podiam ser ambas de metafísica.
vemo-nos porque tem de ser assim,
vemo-nos porque os porquês já não se admitem nos dias de hoje.
por isso é mais fácil ou mais prático que nos vejamos.
porque a tua é uma aula simples sobre o corpo,
e a minha, igualmente simples, mas sobre a terra.
vemo-nos depois das aulas que são ambas metafísicas,
porque ambas são as duas,
e a minha e a tua são de certeza aulas sobre a essência do mundo,
e a essência das coisas é metafísica bastante,
tal como a liberdade, o amor e a vida.
vemo-nos amanhã, porque amanhã é que é dia,
os outros foram.
passaram na convicção do passado ser uma essência da história
entre o que aconteceu e o que ficou por acontecer.
por isso, nos vemos amanhã, porque amanhã é de novo dia,
porque o sol felizmente não se cansará de reaparecer
até que o último homem o comprove
e na sua derradeira aparição o faça sorrir de tédio
ou de cansaço.
por saber que milhões e milhões de vezes o sol inspirou a vida
e a vida reconheceu a luz até à noite,
amanhã vemos-nos.
tu vestida de noite com aquele vestido de cetim que te torneia o corpo de mulher pronta e madura
e eu amargurado pela certeza que essa tua aparição é tão exacta como se estivesses de bisturi na mão
pronta a abrir-me as entranhas na convicção de recolheres nas vísceras a minha alma. estarei com as mangas da camisa arregaçadas
para que comproves que os meus braços em volta do teu corpo têm a mesma latitude. vemo-nos amanhã,
na certeza de que nos tornaremos anatómica e geograficamente perfeitos,
únicos e absolutos num abraço que dispensa o sol.
afinal a noite tem esse benefício perfeito de esconder a luz
para que os homens e as mulheres se compreendam pelo tacto.

J.M.Oliveira 23/IV/2005

O inverno não é uma estação do ano. O inverno não é o frio, a neve, nem a chuva torrencial. O inverno é este corpo num pijama e estes cobertores na escuridão dum quarto, só. O inverno não é o Inverno dos bonecos de neve, dos pés à lareira com um copo de vinho partilhado. O inverno não é o Inverno da ceia de natal, nem dos presentes. O inverno é a ausência do calor do teu corpo, do raio de luz que desponta da retina dos teus olhos. o inverno são estas mãos frias da ausência de outras mãos. O inverno é a geografia humana deserta do horizonte. O inverno é este inferno e Sartre estava enganado.

J.M.Oliveira 27/I/2006